A formação da Maré tem suas origens na década de 1940. No período posterior à Segunda Guerra Mundial, quando a política econômica nacional começava a intensificar a industrialização no Brasil. Tal processo, necessitava de uma melhor integração envolvendo as regiões metropolitanas do país e consequente consolidação da urbanização. Dentro desse contexto, surge o projeto de criação da Avenida Brasil, que seria o fator basilar do surgimento da Maré.
Durante a construção da Avenida Brasil, os trabalhadores responsáveis pela execução da obra tinham sua origem associada aos processos migratórios existentes no país durante o período da industrialização (época de maior fluxo campo-cidade), sendo essa massa de mão de obra, procedente, sobretudo, da região nordeste do país. São esses contingentes populacionais, despossuídos de residência formal, ou sem condições financeiras de arcar com uma moradia legal, que irão povoar inicialmente a área da Maré. Esses nordestinos vão ocupar a princípio as margens da Avenida Brasil, dando origem ao embrião do que atualmente é hoje, o conjunto de favelas da Maré. Quanto aos migrantes que se instalaram nessa região, Santos relata:
[...] a necessidade de morar perto do local de trabalho levou a população migrante a se instalar nos terrenos não ocupados que escaparam da especulação imobiliária pela dificuldade, ou mesmo, impossibilidade de construção: morros, terrenos inundáveis e de propriedade duvidosa. (SANTOS, 2005).
Localizada nas margens da Baía da Guanabara, a Maré caracteriza-se por possuir múltiplas formas ou fatores geográficos. É possível perceber áreas altas como morros, planícies, mangues e a própria presença do mar em parte do seu entorno. Todas essas variáveis existentes no local, sejam elas materiais ou imateriais, resultam numa morfologia habitacional bastante plural. Sobre as diversidades de formas de moradia na Maré Jacques diz:
A pseudossemelhança entre as mais diversas favelas cariocas pode ser desmentida e um rápido passeio pela Maré. A diversidade de formas está patente nas diferentes comunidades do complexo. Quase todas as morfologias urbanas e tipologias arquitetônicas referentes a habitações populares têm ou tiveram um exemplar na Maré: da favela labiríntica de morro ao mais cartesiano conjunto habitacional conjunto habitacional modernista, passando por palafitas em áreas alagadas e conjuntos habitacionais favelizados. Vai-se do padrão mais informal ao mais formal, que acaba se informalizando também. (JACQUES, 2002).
A conjunção desses matizes variados que vão compor a demografia da Maré, resulta em relações simbólicas e espaciais diferenciadas dentro das favelas do complexo Maré. Jacques aponta:
As comunidades que formam o complexo têm características e processos espaciais bem distintos, que vão do mais planejado ao mais espontâneo, do mais regular ao mais irregular, do mais formal ao mais informal, do mais projetado ao mais livre. As diferenças entre as formas, que hoje constituem uma diversidade muito rica, se deram por vários fatores: a história de cada ocupação, as características do sítio, as questões de propriedade, as origens da população, a organização da comunidade, os contextos políticos e sociais. Uma grande gama de formas espaciais pode ser encontrada na Maré.... As diferentes comunidades são tão distintas como os diferentes bairros de uma cidade formal e chegam a ter identidades próprias, que constituem, todas juntas, a cultura multifacetada da Maré. (JACQUES, 2002).
O Estado, foi ao longo dos anos, e é atualmente um ator de importância na transformação socioespacial da Maré, pois foi através de suas ações que se desenvolveram ao longo do tempo um processo de urbanização muito intenso, tendo como marco inicial o Projeto Rio e suas ramificações como o Programa de Erradicação da Sub-habitação (PROMORAR), que alteraram drasticamente as condições infra estruturais presentes na Maré, abolindo as palafitas (casas sob o espelho d’água) e realocando os moradores dessas residências para conjuntos habitacionais construídos sob aterro efetuado em outras regiões da dentro da própria Maré. Outro fator de importância, se dá, na criação do bairro Maré, como forma de gerir melhor o território, tendo em vista sua proporção vasta em termos espaciais e demográficos.
A Maré em sua essência, surge do âmago do problema da habitação popular, e como dito nas palavras anteriormente, se adaptou, transformou, resistiu, se reinventou, contra todos os problemas existentes, desde os políticos, até aos referentes ao meio ambiente (sobrevivência nas palafitas sob o espelho d’água).
A violência local
Segundo dados do censo de empreendimentos econômicos da Maré, realizado pelo Observatório de Favelas e a Redes da Maré, o bairro possui 139 mil habitantes, distribuídos pelas dezesseis favelas que compõem o bairro. Esse dado populacional é importante quando relacionado a magnitude e a dimensionalidade das violências difusas no local.
Segundo Bourdieu, o espaço social é assinalado por duas características condicionantes; o capital econômico e o capital cultural. Tais pontos, segregam grupos sociais distintos cujo reflexo se manifesta na dimensão territorial e consequentemente social. A partir dessa percepção, a Maré, devido a sua situação socioeconômica de baixa renda (se comparada a algumas áreas da cidade) e reduzido nível de instrução educacional/cultural, emerge como uma das áreas “periféricas” do Rio de Janeiro ilustrando um espaço simbólico de um estrato social subalterno.
Na relação Estado-Mercado, a atuação de poder nesses espaços periféricos, seja através do poder público, ou dos agentes privados, passa a acontecer por a e partir das necessidades do capital. Criando formas e métodos de atuação que ultrapassam os limites da legalidade jurídica-institucional. O Complexo da Maré entre meados de 2014 a 2015 contou com a presença da ocupação militar do exército brasileiro. A atuação dos militares mobilizou uma estrutura de guerra, envolvendo tanques, helicópteros, carros de combate, cercas, fechamento de vias, situações somente imagináveis em tempos de grandes conflitos bélicos. A arquitetura política da ocupação Maré montada para garantir o perfeito funcionamento da Copa do Mundo de 2014 cometeu violações de direitos humanos, assim como configurou um verdadeiro Estado de exceção. Porém, essa exceção cada vez mais se torna legal configurando uma situação de supressão dos direitos humanos. Esses instrumentos de exceção, são utilizados quando existe a possibilidade real de um grave problema que precisa ser eliminado, suspende-se por um período limitado as garantias da lei. As “razões de segurança” passam hoje a fazer parte de uma técnica de governo normal e permanente.
Essa excepcionalidade gerou situações ilegais no modo de operação do exército na Maré, houve instauração de toque de recolher em alguns casos, utilização de força desproporcional contra os moradores, revistas em crianças, e principalmente a predefinição dos militares de distinguir os homens, sobretudo os mais jovens como indivíduos associados ao tráfico de drogas local. Sobre isso, Agamben diz:
Não podemos esquecer que o alinhamento da identidade social com a corporal começou com a preocupação de identificar os criminosos recidivos e os indivíduos perigosos. Portanto, não é surpreendente que os cidadãos, tratados como criminosos, acabem por aceitar como evidente que a relação normal entre o Estado e eles seja a suspeita, o fichamento e o controle. (AGAMBEN, 2014).
Ainda sobre o Estado de exceção, porém com o viés mais espacial, Lacoste aponta para a gerencia territorial:
Em nossos dias, a abundância de discursos que se referem ao aménagement do território em termos de harmonia, de melhores equilíbrios a serem encontrados, serve sobretudo para mascarar as medidas que permitem às empresas capitalistas, principalmente às mais poderosas, aumentar seus benefícios. É preciso perceber que o aménagement do território não tem como único objetivo o de maximizar o lucro, mas também o de organizar estrategicamente o espaço econômico, social e político, de tal forma que o aparelho de Estado possa estar em condições de abafar os movimentos populares. (LACOSTE, 2012).
Lacoste revela quais são as reais intenções do Estado quando configura uma zona de exceção camuflando os verdadeiros objetivos sobre o espaço socioterritorial:
Uma das funções das múltiplas estruturas do aparelho de Estado é a de recolher informações, em caráter permanente (é uma das primeiras tarefas dos policiais), e os privilegiados são, também, pessoas bem informadas e muito desejosas de que saibam disso “na alta esfera”. Em contrapartida, as relações entre as estruturas de poder e as formas de organização do espaço permanecem mascaradas, em grande parte, para todos aqueles que não estão no poder.
Como resultante do processo de ocupação militar das forças de pacificação, inúmeras formas de violência aconteceram na Maré, violências físicas, simbólicas, psicológica, etc. Os confrontos envolvendo as territorialidades locais se intensificaram gerando vítimas como o caso de Vitor Santiago, baleado por militares quando voltava de uma partida de futebol. Segundo dados do jornal Estadão, o governo gastou com a presença militar na Maré a cifra de R$ 599,6 milhões durante um ano de presença militar na região, a título de comparação, entre 2009 e 2015, o governo municipal do Rio de Janeiro investiu apenas R$ 303,63 milhões em investimentos sociais. A conjuntura dos megaeventos, fez atuar em ressonância o Estado-capital, garantindo a manutenção da segurança da cidade com a supressão dos movimentos internos que pudessem se manifestar durante a realização dos eventos.
Com a realização das Olímpiadas do Rio de Janeiro em 2016, a prática de controle sobre o bairro Maré foi diferenciada, não havendo a inspeção interna do território (como durante a Copa do Mundo de 2014) e sim um controle do ir e vir nas entradas do bairro (mas ainda com grande aparato repressivo). Soma-se a isso, o anúncio de que uma Unidade de Polícia Pacificadora – UPP seria implantada na região, o que não ocorreu.
A Maré, através de seus atores locais, interage com o Estado, seja de forma dialógica ou contestatória, através de uma multiplicidade agentes sociais: ONGs, civis, coletivos, o território é repleto de movimentos e processos de desenvolvimento e luta por melhores condições locais, visando trazer a tona as potencialidades latentes no bairro, seja dos habitantes, dos entes materiais ou imateriais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGAMBEN, Giorgio. Como a obsessão por segurança muda a democracia. Le Mond Diplomatique Brasil. São Paulo, 6 Jan. 2014. Disponível em: http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1568. Acesso em: 16/11/2015.
BERTAZZO, Ivaldo; JACQUES, Paola Berenstein; VARELLA, Drauzio. Maré Vida na Favela. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002.
LACOSTE, Ives. A Geografia – isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra. Campinas: Papirus, 2012
SANTOS, Rogério Pereira dos. Complexo da Maré: Múltiplas Territorialidades Locais em Movimento. 2005. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Geografia e Meio Ambiente). Centro de Ciências Sociais – Departamento de Geografia e Meio Ambiente. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.