HORTO
Não é de hoje que os trabalhadores que residem no Horto sofrem ameaças, desrespeitos e constantes tentativas de remoção de suas casas. Casas que em maioria foram construídas pelos próprios moradores, ou pelo seus pais, que receberam autorização para ali morarem em troca de seu trabalho e em aproveitamento de sua mão-de-obra no cuidado com o Jardim Botânico.
I - Elementos históricos do conflito:
Sacopenapã (“caminho dos socós”), assim chamavam os Tupinambás a área que compreendia no século XVI o que hoje são os bairros de Copacabana, Ipanema, Leblon, Gávea, Jardim Botânico e Humaitá. Com a chegada dos portugueses a região foi sendo ocupada por engenhos de açúcar. Em 1660 a Lagoa já se chamava Rodrigo de Freitas e Sacopenapã era propriedade de uma só família.
Com a chegada da família real portuguesa em 1808 foi erguida ali uma fábrica de pólvora, a Real Fábrica de Pólvora (em terreno desapropriado de Rodrigo de Freitas Melo e Castro que mantinha ali o Engenho de Nossa Senhora da Conceição da Lagoa) e logo em seguida um Jardim de Aclimatação, em que a idéia era trazer sementes e mudas de várias partes do mundo para serem replantadas no Jardim. Foi como D. João deu início ao que chamou de Real Horto, o atual Jardim Botânico.
Desde o início o parque já necessitava de uma mão-de-obra que cuidasse das plantas em diferentes e difíceis horários, para o que era necessário que vários dos escravos morassem na área para que os cuidados fossem eficazes. E os ex-escravos obtiveram após a promulgação da Lei Áurea (momento em que teriam que começar a receber salários pelo que faziam, o que não ocorreu no início) em troca de seu trabalho, autorizações verbais para construírem suas casas no entorno do parque.
Antes da promulgação da Lei Áurea o quadro de funcionários do Jardim era descrito da seguinte forma: 1 administrador, 2 feitores de escravos e 60 escravos. Com a abolição o governo não tinha recursos para pagar salários e a estratégia adotada foi a doação verbal de lotes, aceita pelos trabalhadores. Havia inclusive um funcionário do Jardim responsável por fiscalizar e demarcar as construções das residências.
Os assentamentos ocorreram em pontos geográficos considerados seguros na época como morros, grotas e áreas altas distantes do caminho das águas.
Houve ainda poucos casos de uma prática conhecida no Brasil: altos funcionários do governo requerendo e obtendo moradia no local.
Em 1811 foram erguidas vilas para a instalação dos trabalhadores da fábrica de pólvora porque o local era considerado de difícil acesso. A posterior transferência da fábrica para a serra de Petrópolis (1826) fez com que a área fosse desmembrada e alienada, sendo muitas casas de antigos funcionários cedidas, já no séc. XX a funcionários do Jardim Botânico.
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O Real Horto passou a ser denominado Real Jardim Botânico em 1818, após a coroação de D. João como Rei do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, isto é, como D. João VI. Fonte: site da AMAJB (http://www.amajb.org.br)
Em 1853 foi erguida uma fábrica de chapéus ao lado do aqueduto da Levada e o proprietário usava a “Taboa, uma erva abundante no local cujas folhas quando secas eram destinadas à tecedura de esteiras, cestas e chapéus”.
Em 1875 o Solar da Imperatriz foi transformado em Asilo Agrícola do Instituto Fluminense de Agricultura para formar meninos órfãos em trabalhos rurais, desativado com a proclamação da República. (BIZZO, SALES e SILVA, 2005)
Moradores e pesquisadores afirmaram em documento produzido pela AMAHOR (Assoc. de moradores do Horto) que até o Império ocuparam o local os índios, duas famílias de senhores de engenhos e a família Real com seus escravos, mas que a partir da República houve uma ocupação consentida de funcionários do Parque que construíram uma vila operária, localizada ao lado esquerdo da Rua Pacheco Leão, entre o Arboreto e o Solar da Imperatriz.
Do lado direito da mesma rua houve um parcelamento do solo já em formato urbano. Em razão da construção de uma fábrica de tecidos em 1888, a Fábrica de Tecidos Carioca, houve a construção de um complexo industrial nos moldes britânicos, em que a infra-estrutura contava com uma vila operária, clube, comércio, berçário e o parque industrial.
Entre 1935 e 1936 foram registradas enchentes marcantes no local quando aproximadamente 2/3 da área do Jardim foi destruída. Provavelmente em razão destes acidentes climáticos, em 1938 o Jardim Botânico foi tombado pelo Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (DPHAN).
O original Jardim de Aclimação, construído em anexo à fäbrica de Pólvora, recebeu as seguintes denominações até chegar o seu atual nome: Real Horto (1808); Real Jardim Botânico (1818); Jardim Botânico da Lagoa Rodrigo de Freitas (1825); Jardim Botânico (1833); Jardim Botânico do Rio de Janeiro e/ou Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro (1998). E acabou por dar nome ao bairro Jardim Botânico. Fonte: site da AMAJB (http://www.amajb.org.br)
Em 1961 o governador do Rio Carlos Lacerda, feroz opositor do presidente João Goulart e político que vinha desde a década anterior articulando o golpe militar que só iria ocorrer em 1964 resolveu criar na área que abrigava o Horto e as cerca de 300 famílias de trabalhadores que ali residiam simplesmente um cemitério. Queria remover a comunidade e fazer um cemitério contíguo ao Jardim Botânico.
Os moradores lembram que foi a primeira proposta que tinha a pretensão remover toda a comunidade, antes as discussões e tentativas de remoção se davam em casos pontuais, mas já preocupavam os moradores.
Moradores entrevistados em diferentes períodos no ano de 2009 revelaram que esta foi a primeira grande questão política que os unificou, organizou e preocupou enquanto coletivo, o coletivo dos moradores do Horto, que começou a articular uma resistência. Resistência que desde este momento pensava em duas principais frentes de ação: protestos coletivos e ações judiciais que garantissem sua permanência.
Foram organizados protestos rememorados pelos moradores mais antigos.
Os moradores reivindicam este episódio como a primeira luta e a primeira vitória coletiva dos moradores na manutenção de sua moradia. Houve repercussão na imprensa sobre a questionada idéia do cemitério e o pedido de Tombamento por parte dos moradores.
A ditadura militar fez avançar, obviamente sem maiores reclamações, alterações substantivas na área do Horto. São exemplos: a instalação de uma estação da Light, que segundo os moradores desmatou a área de forma irresponsável e irrecuperável em setembro de 1965 e de um grande prédio do SERPRO em abril de 1968, também repleto de denúncias de irregularidades na construção além de ter causado profundo sentimento de invasão de concreto armado em seu cuidado e rico ambiente verde. O prédio até hoje assusta moradores e visitantes que caminhando pela região encontram um enorme edifício no meio da mata. Como toda a área em questão é de propriedade do Patrimônio da União, os conflitos que ali ocorrem pela posse e uso do solo, envolvem diversos órgãos públicos federais e toda uma articulação jurídica dos atores envolvidos, posto que a arena mais acionada em termos de conflitos é o judiciário. Pedidos de reintegração de posse, liminares que impedem a reintegração, participação ativa da Advocacia Geral da União, do Ministério Público Estadual e dos advogados da associação de moradores, Juízes e Defensoria Pública da União.
Da ocupação consentida dos ex-escravos e de outros trabalhadores que foram ao longo do tempo recebendo autorizações verbais para ali construírem suas moradias nasceu a Villa do Horto que se inicia onde termina o passeio do Jardim e que hoje abriga em casas simples 589 famílias de funcionários e ex-funcionários do Instituto Jardim Botânico, dos Ministérios do Meio Ambiente e Agricultura, do IBAMA, da EMBRAPA, suas famílias e descendentes.
Grotão, Margarida, Caxinguelê, Vila São Jorge, Escada da Túnica, 2040, Solar da Imperatriz, Dona Castorina, e do outro lado do morro, fazendo fronteira com a Gávea a Major Rubem Vaz. Estas as localidades que juntas conformam hoje a Vila do Horto onde vivem ameaçadas, as 589 famílias.
Uma senhora de mais de 80 anos e que mora no Horto desde que tinha 20 quando se casou com um funcionário do Jardim afirmou em entrevista que tem um sonho recorrente: um machado afiado pendurado ao teto por uma corda que balança exatamente acima de sua cabeça enquanto dorme. Afirmou ainda que qualquer ameaça de remoção sofrida na comunidade e o conseqüente questionamento do que aconteceria com seus filhos (2) e netos (6) que ainda vivem com ela, causam a repetição do pesadelo.
Assista abaixo ao vídeo 'Entre Muros' com entrevista anterior e imagens do dia em D. Clere, moradora do Horto havia 65 anos, foi removida com toda a família de sua casa por ordem judicial em processo movido pela Embrapa:
Assista aqui entrevista com o Tuninho, apelido carinhoso dado a Antônio Herrero Ramos pelos moradores do Horto a um de seus vizinhos mais queridos, que viveu por mais de noventa anos na região e que contou um pouco da luta dos moradores pelo reconhecimento de sua moradia nesta entrevista concedida à Equipe do Observatório em novembro de 2009: